sábado, setembro 24, 2011

Três sentimentos em Idanha e outros poemas portugueses

 Lançamento na Casa de Escrita -Coimbra
        

Apresentação: *Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira

E o Poeta  Alvaro Alves de Faria diz:

            Tenho a poesia como manifestação de fé. E na poesia não sei fazer concessões às facilidades. Faço concessão a vida, ao futuro, ao que existe, ao gesto de solidariedade, a essa luta de todos os dias que ao mesmo tempo em que fascina também me fere.

         A poesia é uma ferida aberta em meu peito. Do tamanho de meu país. Uma ferida que se abriu já na infância e nunca mais se fechou, por onde sangram as palavras, os poemas que se fazem nascer na necessidade de afirmar a própria existência.

         E sendo para mim uma manifestação de fé, é também meu aceno mais limpo em relação às coisas e ao mundo. Em relação às pessoas, aos moradores das ruas, às crianças sem teto, os que se machucaram para sempre, aos que choram nos becos sem saída, a todas as minorias quase sempre ignoradas pelo poder.

         Minha poesia se aninha na floresta, nas asas das aves, do aceno das mulheres, dos homens, das crianças, dos velhos, dos animais, das plantas, em tudo, enfim, que está sendo destruído aos poucos, sem que se perceba. E quando se percebe, a palavra nos é negada.

         A poesia é meu grito mais intenso e mais dolorido também. Porque dói, a poesia dói, sempre doerá. Não há poesia sem dor. Nunca haverá poesia sem dor. Por isso as palavras são cortes profundos feitos a faca, o punhal dentro do coração e essa espada que decepa o brilho da alma.
         Mas nem tudo está perdido. Porque a poesia também é a última luz. É também o silêncio e a ausência, mas sempre será o gesto generoso para tornar o mundo melhor, um mundo que seja igual para todos, que seja de todos, o pão e o vinho, o que haverá sempre de ser.

         Eu venho de um país que se perdeu. Só quem está lá e sente na carne a desonestidade reinante pode dizer de uma certa amargura que a mim, particularmente, tem uma repercussão intensa na minha intimidade.

         Eu não devia usar palavras são sóbrias e até poéticas para falar de assunto de tal aridez. É que eu tenho medo de mim, das minhas palavras.

         A amargura começa com as notícias diárias de corrupção deslavada, descarada, criminosa e mais adjetivos que caibam aqui. Sempre as mesmas figuras. Faz 350 anos que eu vejo sempre as mesmas figuras dando ordens.

         Quando houve a oportunidade de mudar, as pessoas encarregadas dessa mudança traíram a própria vida e a biografia escrita por anos seguidos, ao longo de um tempo bárbaro, de violência, de sangue, tortura e morte.

         Traíram a vida, porque o objetivo era o poder, não a redemocratização. Chegou-se a um ponto que figuras notórias do Brasil, que de alguma maneira participaram da luta pela redemocratização, contra a ditadura, estão agora apresentando a conta ao Governo eleito democraticamente pelo voto do povo.

         Milhares deles, muitos conhecidíssimos dentro da vida brasileira. Quer dizer: foi a ideologia do investimento ou o investimento da ideologia.

         Essas figuras nefastas estão recebendo indenizações milionárias e salários escandalosos até o fim da vida.

         Essa falta de ética e de vergonha na cara atinge todos os setores da vida nacional. Eu repito: todos os setores da vida nacional. E nisso se incluiu as Artes e, particularmente, a Literatura e mais particularmente ainda a Poesia.

         Por isso eu vim buscar em Portugal a poesia que me falta no Brasil. O Brasil é um país de muitos poetas, mas de pouca poesia. Um jornalismo cultural que causa náuseas, desonesto, mentiroso, assexuado.

         Caro que não generalizo. Há excelentes poetas no Brasil, mas estes preferem, de alguma maneira, isolar-se, ficar distante dessa festa de todos dias, de uma mediocridade que assusta, porque hoje a mediocridade é a identidade mais perfeita de meu país.
 
         Estas coisas eu falo lá, não estou dizendo distante não. Falo lá. Cheguei a um ponto em que posso falar, é a única coisa que me resta. Falar até explodir. Houve um tempo em que fui proibido de falar e escrever. E podem ter certeza: esse tempo está voltando ao Brasil, infelizmente está voltando. Está sendo construído aos poucos, passo a passo, como num jogo de xadrez que já tem o vencedor escolhido.

         As tentativas de censura são muitas. Muitas. Mas a sociedade já está vacinada. A mim não interessa ditadura de direita ou de esquerda. Ditador é ditador, pessoa desprezível.

         O que dói é você lembrar que conviveu com pessoas que se debatiam desesperadamente contra a censura à expressão livre da palavra, à expressão do pensamento. Agora no poder, essas mesmas pessoas fazem exatamente o que combateram a vida inteira.

         Eu sou um poeta, mas tenho meus pés bem fincados no chão. Bem fincados. Sou um militante da vida, minha palavra é política, até mesmo quando o lirismo é levado às últimas conseqüências.

         Tenho alguns processos nas costas pelas sátiras políticas que faço na televisão. Sou processado até por ministro. É uma maravilha.

         Seja lá como for, estou em Portugal mais uma vez, para esquecer por alguns momentos um mundo que se despedaça em todos os sentidos, de todos os jeitos.

Ética é uma palavra muito antiga, está fora de moda.


         Três sentimentos em Idanha e outros poemas portugueses. Este livro começou a ser escrito em Idanha, as primeira palavras, os primeiros versos que depois se estenderam com a dor brasileira, aquela paisagem árida de idéias e de poesia. Nasceu-me em Idanha a primeira palavra deste novo livro, quando vi meu pai sentando junto àquelas senhorinhas e senhores sentado à porta da casa, numa tarde de maio, quando as pedras começam a falar e a sentir mais a intensidade das coisas. Desde então, Idanha vive em mim, algo assim como uma alma que se acrescenta a outra alma, as pessoas antepassadas que me pertencem, que fazem parte de minha história, aquela que nem eu mesmo conheço. Não conheço mais sinto. Essa Idanha que me escorre como um rio, nos olhos brilhantes da Senhora do Almortão, desse pequeno poema que me ficou costurado à pele: “Senhora do Almortão/ Para lá vou eu agora/ O meu coração cada dia/ Minha alma a toda hora”. Ficou-me a Beira Baixa inteira, na lasca dessa pedra em que se fez e se faz o poema. Em que sempre se fará o poema. Em que sempre o poema haverá de nascer como nascem as plantas e os pássaros.

         Estou em Portugal com mais um livro que esta terra me deu, a terra de meus país, meus velhos pais que devem estar me vendo de algum lugar do universo.

         “Três sentimentos em Idanha e outros poemas portugueses” reflete um estado de alma, mas principalmente o sentimento de ainda estar no mundo.

         Para terminar, eu quero ler um pequeno poema deste livro que resume tudo que sinto. Chama-se “Ponte 25 de abril”.


                   Quando, em setembro,
                   ao atirar-me às águas do Tejo,
                   de cima da ponte 25 de Abril,
                   em meu coração
                   pensava matar-me.

                   No entanto,
                   passei a respirar melhor
                   e a sonhar
                   todos os sonhos do mundo.  


*Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira





"Doutor pelas Universidades de Poitiers e de Coimbra, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e da Universidade Católica Portuguesa, investiga e lecciona nas áreas de Teoria Literária e Literatura Portuguesa Moderna, de Estudos Camonianos e de Estudos Pessoanos (cadeira que criou na Universidade deCoimbra). 


É actualmente o Coordenador Científico do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e vice-director da Revista Camoniana (luso-brasileira), membro eleito do novo Conselho Científico da FLUC e da Comissão Científica do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas.
É também membro do painel de avaliadores da F. C. T. para as candidaturas a bolsas de investigação para doutoramento e pós-doutoramento, membro da Comissão Científica de várias revistas de Estudos Literários (Mathesis. Estudos Aquilinianos, etc.).
É actualmente Curador da Casa da Escrita, membro do Conselho de Opinião da Rádio e Televisão de Portugal, da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, do Conselho Executivo da Fundação Inês de Castro e do Conselho Editorial da Guimarães Editora. Preside ao Conselho Coordenador da Rota dos Escritores do Século XX da Região Centro.
É actualmente o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra.

Tem integrado com frequência júris dos mais importantes Prémios literários de Portugal e da CPLP, nomeadamente do Prémio Camões, do Grande Prémio Leya, do Grande Prémio Millenium/ Círculo de Leitores, do Grande Prémio da Poesia, do Grande Prémio do Romance e da Novela, do Grande Prémio do Conto e do Grande Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, do Prémio Vergílio Ferreira (Universidade de Évora), e de vários outros, por vezes em representação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ou da própria Universidade (Prémio Trindade Coelho, do Prémio Afonso Duarte, do Prémio António Feijó, do Prémio Vítor Matos e Sá, dentre outros).
                 

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