Poesia e Dor
Álvaro Alves de Faria
Está cada vez mais difícil falar em poesia. A paisagem é absolutamente destruída pelos vândalos da palavra. O país é isso mesmo que a gente vê todos os dias e tem de engolir. Um país que não tem ministro da Cultura há nove anos. Não se tem notícia correta se o Ministério da Cultura ainda existe. Suplementos culturais sem compromisso com nada. Aquela mesma turma de sempre promovendo mediocridades que não passam por uma crítica razoável. E a gente insiste em falar em poesia, em escrever poesia. Eu fugi para Portugal em busca da poesia que me falta no Brasil. Que foi assassinada no Brasil. Excetuando-se alguns poetas honestos, que felizmente ainda existem, a poesia já morreu faz tempo. Não serve para nada nas mãos de pessoas circunstanciais. Ontem, sábado, (16), lancei em São Paulo a pequena novela “Cartas de Abril para Júlia”, que foi publicada em Portugal no ano passado. A edição brasileira tem posfácio assinado pela escritora Graça Capinha, doutorada em Literatura Norte-Americana e professora do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, Seção de Anglo-Americanos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É um resumo da palestra de uma hora que ela fez sobre o livro em um dos eventos culturais mais conceituados da Europa, realizado na Universidade de Extremadura, em Cáceres, na Espanha. Eu vejo “Cartas de Abril pa Júlia” e chego a sentir um certo desencantamento. Dor. Este país poderia ser diferente, não caísse sempre nas mãos daqueles que traem a própria vida pelo poder. Cansei de tanta desfaçatez e isso atinge, também, a Literatura. Seja como for, a ordem é seguir. É o que tento fazer. Mais um livro. Mais um. Um pouco da minha vida. Ou quase minha vida inteira. Deixo neste espaço que a Ana me ofereceu três pequenos capítulos de “Cartas de Abril...”, que dão a idéia do que é o livro. Nesta novela, prossigo com o trabalho que iniciei há mais de dez anos, de cultivar o lirismo da poesia de Portugal, bem como sua linguagem e, no caso deste livro, abordando, também, a linguagem em prosa da poesia e da paisagem espanhola da época de Cervantes.
Camponesa, Júlia andava descalça em meu corpo, na minha pele, como se traçasse o seu caminho pelas colinas com meus pés, atravessava as planícies e os olivais, os pequenos rios de águas escuras, aquele cheiro das terras portuguesas e espanholas, aquelas mulheres que no azul da noite
derramavam azeite num prato com sal, o pão, o copo de vinho e o beijo que escurecia as xícaras de licor. Camponesa, Júlia andava em mim a atravessar as terras, aldeias, casas, vilas, homens e mulheres que cantam essa música nos retratos, ela, Rainha de mim, das terras de Espanha, de Portugal, as pedras de Idanha, os ventos que ardem os olhos e na memória as igrejas com seus santos feridos, cortes profundos, súplicas sem palavras, assim o caminho, o caminho, o caminho, o caminho, ela camponesa em mim, Argamassilha de Alba, mulheres feitas no caule das plantas, os pés de uva, a saliva que se consome e em alguns minutos desaparece da boca. Não sei de meus rumos em tua procura, achar-te no idílio em que me perco, o que me guarda de ti, um amor sem cura, o que me adivinha e te pressente: se não mais puder saber de ti por minha sina, sei também que nunca mais saberei de mim. Sei que parto de meu porto de náufrago com minha nau e deixo em ti, na blusa branca, a tormenta de meus ais, como a navegar os oceanos da alma nas águas de sal, a partir de mim para sempre, sem nunca
deixar o cais. Da sorte que jogo o que me pressente, o que guardo por sentimento, o beijo que fica na boca e que não sente a palavra de teu lamento. O passo que segue teu silêncio que me lamente, levando o meu amor para longo esquecimento. Meu amor derradeiro que se mostra calado e sai ao campo para sempre, sem nunca estar ao meu lado, sai para sempre com meu zelo e meu cuidado, que se vai dentro da tarde com seu rosto cansado, que em mim o silêncio cala, a imagem mais antiga que de si nunca se fala, que às vezes canta e às vezes chora no seu próprio esquecimento, que se abraça em si mesmo a esconder o seu lamento.
Às vezes me sentia um fidalgo. Lendo romances de cavalaria, minha espada de incertezas, meu cavalo a caminhar comigo entre as pedras. Também nas tabernas, onde mulheres cantavam com um xale escuro nos ombros. Também nas estrebarias, onde se colhia a terra útil para as plantas.
Também nos olhos de Júlia que, transformada em Rainha, começou a voar, como voam as aves, especialmente as gaivotas que habitam a margem do mar português, do sal dessas águas em que me guardava, como faziam os duendes nos jardins das casas e dos castelos espanhóis. Depois à noite, quando Júlia me recebia em seu leito, lembrava reminiscências já perdidas, mas buscava as palavras necessárias para dizê-las enquanto percorria nela a dor de tê-la comigo, assim dentro dela, como um lobo, a comê-la por dentro, a fazer dela esse gozo que eternizava o instante.
Quando acabávamos, ficávamos em silêncio, em frases cada vez mais fundas que nos calavam e nos faziam reiniciar toda a mesma busca, ela assim envolvida em mim e eu nela envolvido, num único ai, esse beijo que se corta no lábio e deixa tudo infinito. Eu sei que Júlia não existe, nem existe a palavra que me diz, nem o aceno que me faz aguardar, não existem seus pés, nem seu corpo, nem sua alma, eu sei que Júlia não existe, mas estamos em Argamasilha, onde ela será Rainha, trazendo os caminhos das montanhas. Eu sei que ela existe só em mim, que não sei onde estou, já que
caminhei terras portuguesas com alguns acenos, atravessei os rios, as chuvas, as fendas dos dias nos calendários perdidos para sempre. Júlia tem uma estrela entre os seios que nasce sempre no meio da minha noite, quando a faca corta a paisagem e nos descobre indefesos.
6
As cartas de abril foram escritas sempre quando chegavam as imagens das noites, as sombras que caminhavam diante de mim a dizer palavras que eu não compreendia. Então colocava nas folhas de papel as frases que colhia enquanto caminhava entre as folhas, sandálias perdidas nos rumos das incertezas.
Escrevia as cartas quando a noite se transformava num imenso poço, abril de desesperos e mágoas, de ferimentos que se abriam sempre, o espanto de não me saber, de pensar em Júlia como mulher inexistente, mas tendo ela ali ao meu lado, costurada dentro de mim, eu a calar com ela as luas em fúria que percorriam um céu de tudo vazio e dentro dela a ver o tempo de minha reminiscência, onde me debatia no seu gozo, no seu medo. Caminhava dentro dela como os cavalos caminham nos campos e no espanto das manhãs. As mãos de Júlia sempre diziam adeus, como se partissem sempre para todas as distâncias, ela Rainha de meus receios, das sílabas cortadas que saltavam de minha boca, súplica inútil, corte tão profundo que sangra esquecimentos e desejos, o amor que se desespera e se esvai entre as raízes. As cartas de abril foram escritas quando abril não havia mais, quando todos os dias de abril se perderam levados pelos rios, águas de um tempo invisível, as cartas de abril, as cartas de abril, as cartas de abril, como se estivesse diante do mar a despedir-me de mim e a dizer-me palavras esquecidas, as que desaparecem na boca. Por não existir,Júlia estava ali, dentro de meus sentidos, onde me guardava dos temporais. Estava ali, por dentro, onde vive a alma.
Quando acordávamos, via suas pernas úmidas e nela mexia como se mexe numa planta, no meio dela, onde residiam seus segredos. Mexia nela com dedos trêmulos e me deixava seguir até que dentro dela descobrisse as estrelas cadentes que me habitavam. Será sempre a Rainha Júlia, Rainha de Argamasilha, onde carrego a poesia de Portugal numa bolsa de tecido raro, tão antigo como as casas em que me escondo no final dos dias, igreja de mim mesmo, a palavra ferida de Sóror Juana Inês de la Cruz, os passos em Salamanca onde deixei um ramo de flores portuguesas de Coimbra, a sombra de Inês de Castro, o sangue de Inês no veludo vermelho de sua boca, aquela paisagem do rio em que molhava os pés, as uvas verdes de uma planície. Sentíamos então que a poesia fere a pele que se abre ao corte dessa lâmina que é viver.
Alvaro,
ResponderExcluirVc. é um Poeta Maior, agradeço o mais real Prazer de Ler que nos propricia.
Filipa Saanan
Benza Deus!
ResponderExcluirQuanto mais leio-te, mais me rendo assuas letras.
Alda Bastos-JF