Da inutilidade
Poderia ser um dia de alento, mas isso não existe mais. Estou diante do computador escrevendo isto como se estivesse diante do nada. As coisas todas parecem invisíveis. Troquei mensagens com o poeta Ademir Assunção sobre a inoperância da União Brasileira dos Escritores de São Paulo. Assunção defende que aquilo seja resgatado. Eu defendo que aquilo seja destruído e que se comece tudo de novo, do zero. A incompetência e a mediocridade tornaram-se uma marca brasileira. Tem de começar do zero. Aquilo não existe. É um arremedo da UBE que eu conheci há muitos anos. Nem arremedo. Aquilo é uma coisa ridícula. De absoluta inutilidade. Tudo passou a ser inútil. Até a poesia. Ou principalmente a poesia. Adquiri o livro do poeta Carlos Nejar “História da Literatura Brasileira – Da carta de Caminha aos contemporâneos”. Um livro com 1.104 páginas. Nejar foi generoso comigo. Também saiu agora “Roteiro da poesia brasileira – anos 60”, do poeta Pedro Lyra. Também foi generoso comigo. Olho tanto livro em minha volta e não sei dizer o que sinto exatamente. Os livros parecem dormir nas estantes, mas estão vivos. Falam entre si. Olho os livros que escrevi ao longo da vida e pego “Gesto nulo”, publicado em 1998 pela editora “Ócios do ofício”, de Curitiba, do meu amigo Nivaldo Lopes, que anos depois faria o filme sobre minha entrevista com Borges, em Buenos Aires. Quer dizer: o livro foi publicado em 1998, mas os poemas devem ser de 1995. Eu me pergunto: Será que mudou alguma coisa de lá para cá ? Não sei responder. Nesse mesmo ano começou a trajetória em Portugal, para onde procurei fugir. Nesse tempo eu já estava cansado de algumas coisas, para não dizer todas. Deixo hoje na coluna alguns poemas de “Gesto nulo”, escritos há tantos anos. Gosto muito disse livro. Especialmente a parte dedicada a Silvia Plath. O que será que eu estava sentindo nesse tempo para escrever estes poemas? Na verdade, a resposta não me interessa. Deixo os poemas aos meus 19 leitores. Não sei se vale a pena.
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O maestro
.
Lento o gesto se compõe
como aos poucos
o olhar desaparece.
Os objetos mais comuns
são invisíveis
como invisível é o gesto
da mão dentro da luva.
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Um maestro perdido
no desespero de um tango
corta o palco
com acenos terminais.
.
Sua figura nada tem a ver
com o poema
senão como um recurso
que a literatura aceita
em momentos especiais.
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A liberdade poética não é livre
para reinventar realidades
num discurso à platéia imóvel.
Lento o leito mata o doente
o leito solta salta o pulo
as gazes as costuras o vínculo
e tudo se torna passado.
.
Buenos Aires
Nestas ruas de Buenos Aires
desejo morrer com a primeira mulher.
Guitarras cortam como navalhas
meus pulsos de suicida
por um amor que não conheço.
A mulher que se deita comigo
nesta hora da madrugada
o lábio vermelho molhado de álcool
e o sexo seco
essa mulher me entrega os receios
num invólucro de celofane
e eu
assassino de última hora
permaneço neste quarto
observando os luminosos amarelos
com a nítida impressão
de que nada mais há por fazer.
.
Momento
.
Uma atriz canta ópera no meu ouvido:
comovidamente agradeço
como se fosse um nobre de qualquer estirpe.
.
Não conheço as palavra nem a música
embora a música e as palavras
sugiram tristezas corrosivas.
.
Uma harpa de anjo faz acordes no fundo
de uma catedral onde mendigos
recolhem migalhas e moedas.
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Violinos morrem
enquanto o maestro faz gestos
em um concerto
levado às últimas conseqüências.
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Certamente não sou tenor
e pouco percebo do que acontece em minha volta.
.
Quando muito acordo todas as manhãs
e sem nenhuma convicção saio à procura
de algum amigo que não tenha morrido
durante a madrugada.
.
Conheço algumas mulheres sem rosto
e com elas jogo baralho e adivinhações
que nada antecipam do futuro.
.
De forma que a inutilidade deste instante
em nada pode explicar esta maneira de viver.
.
História
.
A última mulher se atirou no oceano
saltando de um navio
que seguia para o Caribe.
Se houvesse volta passaria
comigo três dias
em qualquer cama de Havana.
Mas se atirou
deixando uma carta para ninguém.
Nesta hora da noite reflito:
ocorrência que não se explica
porque jurava amor ao próximo
e que estava disposta
a lutar em Moçambique.
Em todas as madrugadas
me engolia por inteiro
disponível como qualquer mulher.
Não saberei fazer seu retrato falado
nem dela guardo qualquer documento.
Recorreu à morte por razões próprias
e intransferíveis a qualquer outro mortal.
Quero descer no primeiro porto
e voltar de avião para o meu quarto,
onde tentarei compreender.
.
Óculos de Amsterdam
.
Pelo ritmo do corpo
o andar se perde nas ruas
onde as floreiras de cimento
tentam esconder a rudeza da paisagem.
.
Teus óculos de raiban não te deixam ver
ciprestes galhos folhas formigas
a seiva
não te deixam ver essa ausência dos rostos
das unhas os dedos cortados os seios
não te deixam ver os navios partindo
de porto nenhum de gesto nenhum
não te deixam imaginar o dia
a inauguração deste espetáculo
de artistas quietos sepultados para sempre no palco.
.
Não te deixam ver
não te deixarão imaginar que atrás de cada rosto
pode existir uma pessoa.
.
Teus óculos escuros de Amsterdam
assim brilhantes opacos
assim de um vidro desconhecido
não te deixam observar
nem pressentir nem adivinhar
cicatrizes costuras sedas agulhas
essas coisas
que fazem o dia ser o que é
sem que ninguém saiba porquê.
.
Paganini
.
Se eu soubesse tocar violino
certamente não estaria preocupado
em escrever poemas
como exercícios herméticos.
.
Se eu soubesse tocar violino
violoncelo ou clarineta
certamente
estaria no Teatro Municipal de São Paulo
fazendo um concerto de magnitudes.
.
Não estaria escrevendo cartas
com gestos obscuros.
.
Certamente seria reconhecido no metrô
ao desembarcar na estação da Sé
com meu instrumento de cordas mudas.
.
Se eu soubesse tocar violino
não precisaria comprar flores
para nenhuma mulher
nem seria necessário
calar pressentimentos no meio das madrugadas.
.
Falaria a linguagem dos puros
e evitaria a poesia
do sobressalto que existe em cada esquina.
.
Se eu soubesse tocar violino
não seria Paganini,
mas eu mesmo, sem disfarce,
engolido pelo horror
num palco de teatro nenhum.
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