Álvaro Alves de Faria
A poesia morreu faz tempo. Muito tempo. Mas às vezes respira um pouco, na voz de algum poeta sério que ainda existe. Ainda existem poetas sérios neste país sem rumo e sem saída. São poucos, mas existem. O que reina é um oceano de mediocridades, que envolve especialmente o jornalismo chamado cultural, que de cultural não tem absolutamente nada. Por isso fugi para Portugal, em busca da poesia que, no Brasil, é massacrada todos os dias por vândalos com o respaldo de um jornalismo que não tem compromisso com nada. Homem antigo que sou em mim, ainda acredito na poesia. Eu sei que isso é uma loucura. Mas é assim. Ainda acredito. Tantas crueldades já suportei pela poesia. Perversidades e até alucinações. Às vezes visões de outro mundo. A poesia implica nisso. Há uma expressão em Portugal, usada especialmente por pessoas apaixonadas. Sempre gostei de ouvir. De pessoas que se amam. (Engraçado dizer de pessoas que se amam. Isso existe?). Não quero ser cruel comigo mesmo. Existe sim. A expressão portuguesa não chega a ser comum, porque nela, pelo menos em Portugal, tem significado especial entre os que se querem. Entre os que cultivam ou sonham um mesmo caminho. Um mesmo sonho. A expressão é a seguinte: “Quero-te ao pé de mim!”. Isso significa tudo numa relação amorosa. Faz já algum tempo que escrevo um novo livro. O primeiro título foi esse: “Quero-te ao pé de mim”. Como a poesia requer muito trabalho e exercício, num dia amanheci com outro título na cabeça, quando fui trabalhar os poemas. Reduzi a “Ao pé de mim”. Algum tempo depois esse título passou-me a idéia de um amor submisso, como se alguém que estivesse aos meus pés. Como homem, sendo, neste caso, uma postura poética masculina, achei que não era assim. Cortei esse título, mas não sabia o que fazer. Voltar para o título anterior? Gostava dele. Por que não? Mas não voltei. Nasceu-me. então, numa madrugada, ouvindo meus fados e tomando meu vinho, um terceiro título que julgo ser definitivo. É o seguinte: “Ao pé de ti”. Gostei demais. É exatamente o título que estava dentro de mim. E, depois, graficamente, é bonito, assim composto com quatro palavras, cada uma com duas letras: “Ao pé de ti”. O livro está sendo escrito já há algum tempo, desde o ano passado. Trabalho nele todos os dias. Todos os dias. Todos os dias leio e releio os poemas. Tiro palavras, coloco palavras. Ouço o som das palavras. A musicalidade dos versos. Sempre seguindo a tradição lírica da poesia portuguesa. Porque é em Portugal que vive minha alma do poeta que ainda tento ser. Não abro mão disso, porque é uma coisa existencial, uma coisa de espírito. Principalmente de espírito. Vou para Portugal em setembro. Tenho um encontro marcado com meu pai. Quem sabe minha mãe esteja junto. Por onde sigo em Portugal, meu pai vai junto de mim. Ali, no mesmo passo. Ali, no mesmo caminho. Ali, no mesmo afeto, na mesma saudade que sinto dele que se foi há tanto tempo. Meu pai. Meu pai que só compreendi quando ele se foi. E assim eu vou construindo meu novo livro, como se fosse um monge. Eu sou um monge. Um monge que se esconde. Então eu escolhi três poemas de “Ao pé de ti”, que podem dar a idéia do que será o livro, que posso publicar quando quiser em Portugal. Mas no ano que vem publicarei lá “O tocador de flautas” ou “O tocador de sinos”. Ainda estou com essa questão dentro de mim. Os meus 19 leitores devem compreender. Não é fácil viver. Nada é fácil. Nunca será fácil.
9
No teu corpo
percorro o maior rio da minha aldeia,
com as águas das chuvas,
meu casaco que me esconde,
a raiz
que me atravessa nesse beijo que me fere,
nesse gosto que se tece,
teu gesto de mulher que surge em mim
e depois desaparece.
*
É dentro de teu corpo
que encontro o fundo do que se perde,
tua saliva que no lábio arde,
a noite por viver
ao saber que agora é tarde.
*
A música da tua boca,
dentro de ti como nas igrejas,
ouvir-te por dentro
a palavra que mais desejas.
*
No teu corpo,
teu mar de Portugal,
onde navego sem rumo
a me fazer tanto mal.
*
Dentro de ti,
a minha descoberta,
o tempo que me para
nesta ferida ainda aberta,
nesta rima de teu nome,
no que me falta tanto,
minha sede, minha fome.
*
Deixa teus dedos em mim
para que eu possa sentir
da tua música o que me cabe
e que está ainda por vir.
*
Por fim, deixa nascer a poesia,
que a luz é necessária,
tua busca, teu silêncio,
tua ausência, tua ária.
Calas as plantas com tua boca de setembro,
quando nascem os pássaros,
calas as plantas
como se calasses em mim
o que de mais íntimo ainda conservo,
a palavra que não me digo
não me deixo perceber.
*
Sabes, no entanto, que ao teu colo
deixarei ferir o gesto inútil que ainda tenho,
aquele que caiu dos dedos que me tiraste,
o corte fundo da lâmina
a arrancar de mim o ai perdido no ser.
*
Vazia a paisagem do dia
vista assim da janela que não há,
como as avencas no vaso que se quebra,
um beijo molhado de salivas,
sal do mar, do antigo mar,
do mar antigo que me reserva
o espaço noturno de morrer,
como se assim fosse
o que haverá de ser.
19
Quero-te ao pé de mim
como se a vida que se faz me fosse assim a tua face,
lábio de vidro em que derramo o licor de minha essência,
onde não mais existo
e apenas me corto por dentro de ti,
onde as casas estão fechadas,
janelas que se perderam para sempre,
tua pele que me desfaz
e o fragmento que ainda me deixo ser
se cala no poema que nunca será escrito.
*
Quero-te ao pé de mim
para deixar que as pedras que tenho nos bolsos
me façam amanhecer na alma dos campos,
onde os rebanhos e as árvores vivem
como as coisas naturais.
*
Tragas à noite tua concha com o gosto do mar,
o sal da tua lágrima e a haste de teus dedos
que me percorrem a paisagem mais íntima
que me guardo ausente,
porque sempre estou ausente de mim
e me faço mais na ausência de ti,
quando de repente anoiteces sem que percebas
o segredo das plantas, das raízes, dos castelos,
da relva, das folhas, dos insetos,
essa pedra que trago por dentro,
como se a me ferir porque necessito desse ferimento,
essa pedra
essa pedra
essa pedra
*
essa perda
*
que me engole oceano a dentro:
*
faz noite, amor, e o tempo
Maravilhoso!
ResponderExcluirBom que estás em PORTUGAL.
Alda Barros-Lisboa