Álvaro Alves de Faria
Achou-se uma carta de amor,
achou-se um beijo esquecido,
achou-se uma corrente invisível
como uma fotografia de Deus,
achou-se um pedaço de olhar,
achou-se uma boca trêmula,
perdeu-se um chapéu vazio,
achou-se um guarda-chuva melancólico,
perdeu-se um bicho de estimação
com dois olhos de pelúcia,
perdeu-se um destino,
perdeu-se uma jura inútil,
achou-se uma sombra abandonada,
perdeu-se um catecismo sem infância,
perdeu-se uma manhã que não nasceu,
achou-se uma caixa de fósforos com um brinco,
perdeu-se um rosto quase aflito,
achou-se um par de luvas com as mãos dentro,
achou-se uma cabeça de mulher,
achou-se um dedo indicador,
perdeu-se um anel de casamento,
achou-se um sino de cerimônias fúnebres,
perdeu-se um túmulo aberto,
achou-se um livro sem palavras,
perdeu-se uma fotografia de 1956,
achou-se uma bicicleta que voa,
perdeu-se um rumo,
perdeu-se um espelho sem imagem,
achou-se um ingresso para nenhum espetáculo,
achou-se o gesto de uma bailarina,
perdeu-se um livro religioso com duas orações,
perdeu-se uma receita médica
com dois comprimidos para morrer,
perdeu-se uma pálpebra fechada,
achou-se uma porta aberta,
perdeu-se uma chave do nada,
achou-se um revólver
com duas balas providenciais,
achou-se um vaso morto de avencas,
perdeu-se um grito de desespero,
perdeu-se uma extrema-unção,
achou-se uma semente não se sabe de quê,
achou-se um par de patins,
perdeu-se um beijo vermelho,
perdeu-se um roteiro para as Índias,
achou-se uma estrela cadente,
perdeu-se o zíper de um vestido de noiva,
perdeu-se a alegria de uma festa,
perdeu-se um colar de pérolas falsas,
perdeu-se um sapato que andava sozinho,
perdeu-se um pássaro sem asas,
perdeu-se um paletó sem o braço direito,
achou-se um envelope sem destino,
achou-se um vidro com remédio contra a loucura,
perdeu-se um navio sem partida,
achou-se um oceano dentro de um livro,
achou-se uma capa molhada,
perdeu-se um relógio parado,
perdeu-se um rosto desconhecido,
perdeu-se uma caixa de ausências,
achou-se um circo sem ninguém,
achou-se um cartucho de sonhos,
achou-se uma tentativa de suicídio,
perdeu-se uma oportunidade,
achou-se uma pulseira distante,
achou-se uma garrafa de veneno,
perdeu-se um discurso
de uma solenidade que não houve,
achou-se um poema póstumo,
achou-se um disco inaudível,
achou-se uma pedra sem serventia,
perdeu-se uma caravela que ia partir,
perdeu-seu uma noite de acasos,
achou-se um verbo no passado,
achou-se uma bolsa de silêncios,
achou-se uma morte por abandono,
achou-se um ferimento grave por agonia,
perdeu-se um cachecol amarelo,
perdeu-se uma gaita sem música,
achou-se um semblante pálido,
achou-se a tez apagada de um poeta,
perdeu-se o tempo de regressar,
perdeu-se um gesto paralítico,
perdeu-se um vaso de crisântemos azuis,
perdeu-se uma fábula de Voltaire,
achou-se um pombo correio que não
sabe para onde voltar,
perdeu-se um estojo de veludo cheio
de notas musicais,
perdeu-se uma vela acesa,
perdeu-se uma imagem de São Judas Tadeu,
perdeu-se uma súplica,
achou-se uma clave de sol,
perdeu-se um piano sem teclas,
perdeu-se um binóculo sem lente,
achou-se uma jarra de licor,
perdeu-se um sobrenome,
perdeu-se uma tarde do mês de abril,
achou-se o bonde da história,
achou-se um vidro de perfume quebrado,
perdeu-se um entardecer,
perdeu-se uma sombra,
achou-se uma mala com roupas de ir embora,
achou-se um santo no último banco de uma igreja,
achou-se uma agulha de bordar aflições,
achou-se um peixe fora da água,
achou-se um cérebro danificado,
achou-se um rio de dinheiro,
perdeu-se a identidade,
achou-se uma cantora lírica que não sabe quem é,
achou-se uma flauta doce que só toca no amanhecer,
perdeu-se um altar com santos desconhecidos,
perdeu-se a consciência,
perdeu-se uma alma de mulher,
perdeu-se um amor desesperado,
perdeu-se um abraço amigo,
perdeu-se a Beleza embrulhada
num celofane com laço azul,
perdeu-se um presente de aniversário,
perdeu-se um período de 30 anos de uma vida,
perdeu-se uma valsa,
perdeu-se uma bolsa de flores silvestres,
perdeu-se um fio de cabelo,
achou-se um cão que atende por todos os nomes,
achou-se um arco-iris,
achou-se uma bolsa de cristal,
achou-se uma cópia da Moça com Brinco de Pérolas,
achou-se uma lua cheia num poço,
achou-se um vestido de luto,
perdeu-se um terço com preces desnecessárias,
achou-se uma madrugada na varanda,
perdeu-se um livro dos sonetos ingleses de Pessoa,
perdeu-se um casaco de veludo comprado em Moscou,
perdeu-se a foto de um fuzilamento,
perdeu-se um braço amputado,
achou-se um tabuleiro de xadrez sem as rainhas,
achou-se uma boneca que chora e respira,
achou-se uma camisa que fugiu do varal,
perdeu-se um balde com água da chuva,
perdeu-se uma cegonha que não voa mais,
perdeu-se um avental nostálgico de uma senhora,
achou-se um pastor de ovelhas,
achou-se um convento abandonado,
achou-se a coroa de uma rainha que nunca existiu,
achou-se uma cítara sem cordas,
perdeu-se um alfinete inútil,
achou-se uma fonte luminosa apagada,
perdeu-se a asa de um anjo,
perdeu-se um cisne num lago europeu,
achou-se uma xícara de esquecimentos,
perdeu-se uma par de sandálias,
achou-se uma ovelha perdida,
achou-se uma escada que só desce,
achou-se uma batina lilás,
achou-se um rosto de ninguém,
perdeu-se um porto de espera,
perdeu-se uma ode de Ricardo Reis,
achou-se uma tarde de Outono,
perdeu-se uma moça sonâmbula,
perdeu-se um aceno delicado,
perdeu-se uma chapa de pulmão,
perdeu-se um álbum com quatro fotografias,
perdeu-se o que não se achará mais,
perdeu-se a poesia em tudo,
perdeu-se a razão para viver.
(Do livro “Os dias derradeiros”, inédito)
Álvaro, seja mais que bem vindo a Literacia.Sua estréia , brilhante. Um poema de encantar, de ler e ler...e dizer...e dizer, tamanha beleza.
ResponderExcluirObrigada meu abraço fraterno.
anamerij
Magnífico. Canto mágico, trágico, da condição, da contradição humana. Permeando objetos úteis, servis, conferindo-lhes inutilidade.
ResponderExcluirNão conhecia esse tão agudo poeta, a quem, uma vez lido, passei a superadmirar.
Parabéns a Literacia por expô-lo.
Ricardo Augusto dos Anjos
Um Poeta MAIOR,qualidade e primazia literária.
ResponderExcluirEncantada estou.
Parabéns Nana-querida por nos ofertar esta opotunidade ímpar de ler sempre o Melhor!
Filipa Saanan-RJ
Que Poeta Maior este? Alegria imensa em conhecer, obrigada Literacia por difundir QUALIDADE.
ResponderExcluirMaria Zélia Baeta- BH
Nossa, fico em estado de graça......
ResponderExcluirAbração
Belvedere