sábado, julho 30, 2011

No Brasil muita gente fala e escreve sem saber do que está falando...

          
MONTEIRO LOBATO: O LADO OBSCURO






ÁLVARO ALVES DE FARIA
[De São Paulo]

Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos, uma porção de gente até de “nome” chegou a dizer que, além do grande escritor que foi, Monteiro Lobato foi também um visionário. Essas pessoas citavam o livro de Lobato “O presidente negro”, evidentemente sem saber do que estavam falando. No Brasil muita gente fala e escreve sem saber do que está falando, especialmente nos suplementos culturais, particularmente no famigerado eixo Rio-São Paulo. Suplementos culturais que de culturais não têm nada, absolutamente. Já fui criador e editor de um suplemento cultural, o Jornal de Domingo, do extinto Diário de São Paulo, dos Diários Associados. Sei como isso funciona. É aquela turminha de sempre que domina o chamado jornalismo cultural e as universidades.

Suplementos culturais feitos só de elogios aos amigos e desprezo aos “inimigos”. Suplementos culturais feitos por gente que não sabe nada de nada. Só para citar um exemplo. No dia 28 de agosto de 2008, o poeta Alexei Bueno me telefonou dizendo que Alphonsus Guimaraens Filho tinha falecido e que nenhum jornal deu uma única notícia, incluindo os tais suplementos culturais que, certamente, nem sabiam quem foi o poeta. Indignado, Alexei me passou uma notícia que coloquei no ar várias vezes, na Rádio Jovem Pan de São Paulo e na Rede-SAT. É assim mesmo que funciona. É gente despreparada mesmo. Resumindo: Como me disse certa vez o poeta Ferreira Gullar, em viagem que fizemos para Portugal: “Estou cansado de ler gente escrevendo sobre Baudelaire sem nunca ter lido um único verso de Baudelaire”.

Mas voltemos ao nosso assunto:

Então quando Barack Obama se elegeu foi aquela louvação. Todo mundo falava e escrevia sobre “O Presidente Negro” de Monteiro Lobato, o grande Monteiro Lobato.

O Brasil tem um costume que faz parte de sua identidade. E também de sua máscara tantas vezes tenebrosa. Não se deve mexer, digamos assim, com os considerados nomes “sagrados" da história brasileira e isso inclui política, esportes, comportamento, música, literatura. Isso inclui tudo.
       
Literatura, sim, literatura. Isso também atinge a literatura. Muitos nomes são intocáveis. Não se pode falar nada contra o que foi institucionalizado. É a identidade do país mesmo. Este país tem tendência a ter pensamento único.

Por exemplo: tem-se que dizer, sempre, que a poesia de João Cabral de Melo Neto está entre o que de melhor se produziu no Brasil em todos os tempos. E isso é uma grande mentira. Essa poesia de João Cabral, a poesia do engenheiro, como ele queria, é apenas um tijolinho em cima de outro tijolinho. No final, temos uma peça sem alma nenhuma. Uma estrutura feita a fio de prumo, com a ajuda, provavelmente, de régua e compasso para não errar no cálculo. E só. Uma poesia vagabunda. No fundo, é isso. Uma poesia vagabunda, um poema sem poesia. Aliás, a poesia tornou-se proibida. Mas tem-se que se dizer o contrário. Com os nomes “sagrados” é assim mesmo.

Com as eleições norte-americanas e com o surgimento do nome do senador democrata Barack Obama, muita gente citou o romance “O Presidente Negro”, de Monteiro Lobato, discorrendo louvores intermináveis ao escritor brasileiro, como se ele, além de escritor, também tivesse sido um profeta, um visionário. O livrinho foi citado em todo lugar. A editora Globo até providenciou uma nova edição do romance. Uma literatura que não pode ser considera sequer sofrível. É mesmo lastimável, até pelas circunstâncias oportunistas que cercam esse livro deprimente. E literariamente é, também, um romance mal construído.

O livro, originalmente, chamou-se “O Choque das Raças ou O Presidente Negro”. Depois passou a chamar-se “O Presidente Negro ou O Choque das Raças: Romance Americano do ano 2228”. Lobato classificou o romance como ficção científica. A edição original foi lançada em 1926.

 Vamos então falar de Monteiro Lobato, um dos "monstros sagrados" da Literatura brasileira, sobre o qual qualquer palavra contrária soa como pecado sem perdão. Não se nega: Monteiro Lobato foi um grande escritor. Teve e tem esse mérito. Sua obra está aí para provar. Mas cometeu o equívoco de escrever esse romance racista, preconceituoso e também nazista. Coisa que ninguém fala. Parece  tratar-se de algo que tem de permanecer sempre escondido. Assunto proibido. O Brasil tem muitos assuntos proibidos. O Brasil devia ser proibido.

Vou me atrever a falar sobre isso. Preciso aumentar minha lista de desafetos. Com a possibilidade de o senador negro Barack Obama se tornar o novo presidente dos Estados Unidos, o romance oportunista "O Presidente Negro", de Monteiro Lobato, o grande Monteiro Lobato de Urupês, Cidade Mortas e tantos outros livros, além do Sítio do Picapau Amarelo, entrou na ordem do dia. E sempre acompanhado daquelas palavras  bem brasileiras, no dia diz respeito às louvações inúteis.
       
O romance "O Presidente Negro" é um livro horrível, péssimo, com idéias que o mundo conheceria alguns anos depois como nazismo. Não foi escrito somente para ganhar dinheiro. Não. Foi escrito, também, como defesa de idéias assustadoras em relação às raças, ao homem e seu meio e até mesmo com respeito a regimes políticos de governo. Seja como for, Lobato pensava ganhar, no mínimo, 1 milhão de dólares. Não sei bem o que isso representava naquela época. Um romance escrito por Monteiro Lobato, escritor e empresário editorial, fundador da Companhia Editora Nacional e da Editora Brasiliense. Um livro que, lido hoje, causa constrangimentos e arrepios, além uma espécie de vergonha. A palavra é essa mesma: vergonha.

         Por que ninguém diz isso ? Porque, no Brasil, não se pode mexer com os chamados "monstros sagrados". "O Presidente Negro"  fala numa eleição para a presidência norte-americana em 2228. Concorrem um negro, uma mulher e o presidente que está terminando seu mandato e tenta a reeleição.

 Na questão da candidata mulher, seria, digamos, uma manifestação feminista, uma espécie de enfrentamento ao mundo dominado pelos homens, situação inaceitável por Lobato. Mulher era só mulher, mais nada.  Serva do homem. No caso do negro, a representação era óbvia, na questão do racismo. E com essa divisão de forças políticas, o candidato negro acaba vencendo a eleição. Revelando bem como pensava,  Monteiro Lobato mostra no seu romance que, derrotadas, as mulheres meteram o rabo entre as pernas e voltaram para casa, para viver quietinhas ao lado de seus maridos, os donos de tudo e delas também.
       
O livro de Monteiro Lobato é todo feito de preconceitos. Quando lançou "O Presidente Negro", Monteiro Lobato era considerado o mais conceituado escritor brasileiro da época e o mais lido também, apesar de suas posições ultrapassadas e odiosas em relação à própria arte que se produzia no Brasil. Sua posição era de alguém que estava saindo do século 17, com ressentimentos  exacerbados e um ódio a tudo que lhe cheirasse novo. Nesse caso, basta ver, por exemplo, o que escreveu sobre a exposição de Anita Malfatti, em São Paulo, em 1917, considerada a primeira manifestação da renovação das artes plásticas brasileiras. A pintora reunia em torno de si um grupo  de artistas, escritores e poetas que fizeram a Semana de 22. Monteiro Lobato transformou-se numa fera. Só para citar um único exemplo. Que fosse uma crítica, tudo bem. Mas não. Era ódio puro. Desclassificação odiosa. Um horror.
       
Lobato escreveu "O Presidente Negro" em algumas semanas para entrar no mercado americano. Além de expor suas idéias medonhas, o objetivo era ganhar dinheiro. A idéia lhe surgiu quando serviu de adido comercial no consulado brasileiro em Nova York. Achava que poderia vender 1 milhão de exemplares. Acreditava que seu livro mereceria as melhores críticas nos jornais, com longas entrevistas e provocasse discussões que iriam, certamente, para além da literatura, determinando conceitos políticos e comportamentais.
       
Vejam o trecho de uma carta que Lobato escreveu ao amigo Godofredo Rangel, discorrendo sobre o livro e dizendo tratar-se de uma “idéia mãe”, trecho extraído do livro “Quarenta anos de correspondência entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel”, Editora Brasiliense, 1950: “Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos. Meio à Wells, com visão do futuro. O elo será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco”.

         É...vejam bem: vence por fim a inteligência do branco...

Na história de Monteiro Lobato, os Estados Unidos possuíam, na imaginação do escritor,  pouco mais de 200 milhões de brancos, e pouco mais de 100 milhões de negros. O escritor defendia o que Lobato chamava de aprimoramento das raças, a volta das leis espartanas, que eliminavam os portadores de defeitos físicos já no nascimento, e isso valia também para os portadores de deficiência mental.

 Esse grande novo mundo idealizado por Monteiro Lobato tinha,  no entanto, um problema, pelo menos em relação aos Estados Unidos: uma sociedade dividida entre brancos e negros. E ele, o escritor, deixa claro qual é seu lado preferido, de uma maneira em que o preconceito salta de maneira assustadora.

         Para resolver essa questão, o grande Monteiro Lobato criou no seu romance um personagem que inventou uma loção para alisar os cabelos dos negros. Até o presidente negro eleito passou a usar a loção. Só que a loção tinha um efeito colateral fulminante, porque esterilizava quem a usasse. Assim, com o tempo, os Estados Unidos se viriam livres dos negros. Seria uma espécie de extermínio. Não há outra maneira de explicar isso. Por isso é preciso repetir: seria uma espécie de extermínio. O que a loção de Lobato faria com os negros, Hitler fez com o povo judeu.
       
Nenhuma editora americana aceitou o "O Presidente Negro". Mas esse parece ser um assunto proibido no Brasil. E teve gente falando do livro, como se a obra fosse um primor, uma espécie de profecia. O escritor foi até chamado de visionário por alguns incautos que usam um lenço abaixo do queixo por causa da baba. No fundo, no fundo, o romance representa uma mancha na literatura de Lobato e em sua própria vida feita, é inegável, de alguns fatos marcantes.

         Diante do desapontamento, Monteiro Lobato caiu na real. Pelo menos é o que se deduz. Não ganharia 1 milhão de dólares com seu livro racista, envolvido pelas idéias de Le Bon, expressas especialmente em “L´Homme et les Sociètes”, de 1881, em que dizia que os seres humanos foram feitos de maneira desigual, miscigenada, e isso representava a degeneração racial. No caso, as mulheres são seres desprezíveis diante dos homens, sejam brancas ou negras. Pertencem a uma raça inferior.
       
O povo brasileiro ele resumiu na figura do Jeca Tatu. E ao povo brasileiro, ao homem brasileiro - como escreveu numa carta a um amigo em 1905 – dizia faltar uma dose de sangue de uma raça superior. Nessa carta ele chama de “patriota” o brasileiro que consiga se casar com uma mulher européia.

Em setembro de 1927, ele escreveu ao amigo Godofredo Rangel falando com uma angústia raivosa sobre seus planos fracassados nos Estados Unidos, dos dólares que não viriam como imaginou, da editora que tentou fundar e que não saiu do papel e especialmente sobre seu romance racista que nenhuma editora norte-americana aceitou. Dizia, nessa carta, que ninguém queria o livro: “Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros”.
       
No final, choca saber que esse é o Monteiro Lobato do Sítio do Picapau Amarelo, o homem preso por questões políticas, combativo defensor do petróleo brasileiro, essas coisas todas que, no fundo, viviam dentro de um ser ideologicamente fora do mundo racional,  que produziu um romance deplorável.

         Monteiro Lobato era um retrógrado ao seu próprio tempo. Muitos amigos dele se afastaram porque as idéias e discussões racistas se tornaram insuportáveis. Era um homem completamente ultrapassado em tudo que dizia respeito ao ser humano e também à própria arte, incluindo a literatura. O nazismo era ainda uma idéia, a semente de um tumor maligno. Mas ele já era nazista antes da idéia se concretizar para o espanto do mundo.
       
Além de perder tempo com literatura, especialmente poesia, sou ainda jornalista profissional. Fora a obra literária, tenho publicados cinco livros sobre Jornalismo. Em um deles, “A Voz do Rádio”, de 2002, na pesquisa que fiz, encontrei a última entrevista concedida por Monteiro Lobato, 36 horas antes de morrer, no dia 4 de julho de 1948. O escritor foi ouvido por Murilo Antunes Alves, da Rádio Record de São Paulo, no seu apartamento na rua Barão de Itapetininga, hoje centro velho da cidade, às 16 horas do dia 2. 

         Nessa entrevista,  Monteiro Lobato mostrava-se profundamente cético, amargurado e bastante irônico. Esclareceu que nada poderia falar sobre política e sobre o país, por estar proibido de se manifestar sobre esses assuntos. Disse que tinha um arrependimento na vida: de ter escrito também para adultos. “Perdi tempo escrevendo para gente grande, uma coisa que não vale a pena”. Afirmou, também que a melhor filosofia de vida era não acreditar em nada. Indagado sobre qual a sua obra que mais gostava, respondeu: “A obra que mais me agrada é a que me dá mais dinheiro”. E citou Narizinho. Por fim, observou que o universo mais importante na vida do homem era o das crianças. Mas eu não sei se ele falava a verdade

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