domingo, setembro 04, 2011

in, “Três sentimentos em Idanha e outros poemas portugueses”


ALMA


Tudo vale a pena

quando a alma diminui

seu tamanho natural,

assim reduzida em sua forma.

Tudo vale a pena

quando a alma escapa

e no seu delírio ama

a possibilidade de sua vida,

assim pequena,

tão frágil alma

que não cabe numa xícara

ou num cálice que se quebra,

essa alma sem começo

e sem fim em seu destino.

Tudo vale a pena

quando a alma

no fundo rigor de sua pena

                   fica sem Deus



MEMÓRIA


Sou aquele homem que esqueceu:

faz trinta anos que estou parado

num período do tempo

que não sei,

embora antes colecionasse relógios.

*

Colecionador de relógios,

passava os dias observando os pássaros.

*

Sou aquele homem que esqueceu:

*

caminho agora no quarto

cm círculos que não terminam.

*

Esquecido,

corro pelas brumas

em busca de cavalos

que nunca encontrei.

*

Sou aquele homem que se perdeu:

*

foi talvez numa paisagem noturna

ou numa cidade que nunca conheci.

*

Nesse tempo

eu plantava cerejeiras

e colhia a água dos rios.

*

Sou aquele homem que morreu:

*

apaguei as janelas da minha casa

e me tranquei por dentro

como se assim pudesse

livrar-me de mim.

*

Sou aquele homem

que pulou do décimo andar:

*

nesse tempo eu olhava as aves

que faziam ninhos nas igrejas

e delas recebi as asas

que precisava para voar.



SACERDOTE




Quando eu pensei em ser padre,

Deus não precisava ser temido por ninguém.

*

Depois desisti,

sem saber exatamente porquê.

*

A freira que ia casar-se comigo se matou

numa sexta-feira da Semana Santa.

*

Joguei então minha batina no fogo

que também me consumiu.

*

Então virei santo,

mas ainda não fiz nenhum milagre,

tenho muito a aprender.



PONTE 25 DE ABRIL




Quando, em setembro,

ao atirar-me às águas do Tejo,

de cima da ponte 25 de Abril,

em meu coração,

pensava matar-me.

*

No entanto,

passei a respirar melhor

e a sonhar

todos os sonhos do mundo.



MILAGRE





Quando pensei ser santo a primeira vez,

estava em Portugal

tentando pregar-me a uma cruz,

diante da Igreja de Miranda do Corvo.

*

Como um sacerdote pecador,

segui caminhos distantes

na Capela de Nossa Senhora do Desterro.

a conversar com os insetos ao pé das árvores.

*

Depois fui ser santo outras vezes

caminhando por aldeias antigas,

onde as mulheres colocavam as mãos

nos meio das pernas e faziam rezas

com muitos soluços de longos ais.

*

Flagelo de mim,

castiguei-me a andar de joelhos

e dormi noites perdidas

junto à porta da Igreja de Ceivães.

*

Abri feridas em meu corpo

e deixei ensanguentar-me exaurido de mim,

a deixar que minha alma

se guardasse

na Igreja de Santa Maria de Cortegaça.

*

Depois inventei preces e conversei com Deus,

louvando por meu destino

a lavar o altar

a Igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira.

*

Finalmente virei santo

e fiz meu primeiro milagre

a andar com um cajado pelas montanhas:

*

então entrei em mim mesmo,

ergui meus olhos aos céus

e desapareci para sempre.

*

Nunca mais soube de mim.


  
Não tenho medo de nada. Tenho medo de mim. Não dá mais. Os dias estão difíceis. Os dias escorrem pelas paredes como sombras antigas. Os dias estão na ponta dos dedos feridos. Os dias desapareceram. Os dias se calaram na boca. Os dias se perderam. Os dias engoliram a poesia do dia. Está tudo noite. Está tudo quieto. Está tudo imóvel. Meu rosto no espelho se apaga aos poucos. Não sei mais por onde me ando..

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