ALMA
Tudo vale a pena
quando a alma diminui
seu tamanho natural,
assim reduzida em sua forma.
Tudo vale a pena
quando a alma escapa
e no seu delírio ama
a possibilidade de sua vida,
assim pequena,
tão frágil alma
que não cabe numa xícara
ou num cálice que se quebra,
essa alma sem começo
e sem fim em seu destino.
Tudo vale a pena
quando a alma
no fundo rigor de sua pena
MEMÓRIA
Sou aquele homem que esqueceu:
faz trinta anos que estou parado
num período do tempo
que não sei,
embora antes colecionasse relógios.
*
Colecionador de relógios,
passava os dias observando os pássaros.
*
Sou aquele homem que esqueceu:
*
caminho agora no quarto
cm círculos que não terminam.
*
Esquecido,
corro pelas brumas
em busca de cavalos
que nunca encontrei.
*
Sou aquele homem que se perdeu:
*
foi talvez numa paisagem noturna
ou numa cidade que nunca conheci.
*
Nesse tempo
eu plantava cerejeiras
e colhia a água dos rios.
*
Sou aquele homem que morreu:
*
apaguei as janelas da minha casa
e me tranquei por dentro
como se assim pudesse
livrar-me de mim.
*
Sou aquele homem
que pulou do décimo andar:
*
nesse tempo eu olhava as aves
que faziam ninhos nas igrejas
e delas recebi as asas
que precisava para voar.
SACERDOTE
Quando eu pensei em ser padre,
Deus não precisava ser temido por ninguém.
*
Depois desisti,
sem saber exatamente porquê.
*
A freira que ia casar-se comigo se matou
numa sexta-feira da Semana Santa.
*
Joguei então minha batina no fogo
que também me consumiu.
*
Então virei santo,
mas ainda não fiz nenhum milagre,
tenho muito a aprender.
PONTE 25 DE ABRIL
Quando, em setembro,
ao atirar-me às águas do Tejo,
de cima da ponte 25 de Abril,
em meu coração,
pensava matar-me.
*
No entanto,
passei a respirar melhor
e a sonhar
todos os sonhos do mundo.
MILAGRE
Quando pensei ser santo a primeira vez,
estava em Portugal
tentando pregar-me a uma cruz,
diante da Igreja de Miranda do Corvo.
*
Como um sacerdote pecador,
segui caminhos distantes
na Capela de Nossa Senhora do Desterro.
a conversar com os insetos ao pé das árvores.
*
Depois fui ser santo outras vezes
caminhando por aldeias antigas,
onde as mulheres colocavam as mãos
nos meio das pernas e faziam rezas
com muitos soluços de longos ais.
*
Flagelo de mim,
castiguei-me a andar de joelhos
e dormi noites perdidas
junto à porta da Igreja de Ceivães.
*
Abri feridas em meu corpo
e deixei ensanguentar-me exaurido de mim,
a deixar que minha alma
se guardasse
na Igreja de Santa Maria de Cortegaça.
*
Depois inventei preces e conversei com Deus,
louvando por meu destino
a lavar o altar
a Igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira.
*
Finalmente virei santo
e fiz meu primeiro milagre
a andar com um cajado pelas montanhas:
*
então entrei em mim mesmo,
ergui meus olhos aos céus
e desapareci para sempre.
*
Nunca mais soube de mim.
Não tenho medo de nada. Tenho medo de mim. Não dá mais. Os dias estão difíceis. Os dias escorrem pelas paredes como sombras antigas. Os dias estão na ponta dos dedos feridos. Os dias desapareceram. Os dias se calaram na boca. Os dias se perderam. Os dias engoliram a poesia do dia. Está tudo noite. Está tudo quieto. Está tudo imóvel. Meu rosto no espelho se apaga aos poucos. Não sei mais por onde me ando..
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